A trilogia Escravidão, de Laurentino Gomes, nasceu para ser um importante apanhado de informações sobre esse macabro sistema que varreu o mundo na era dos descobrimentos. Em sua obra, o autor se volta para o Brasil, que foi o último pais das Américas a abolir a escravidão e por muitos anos foi o centro do tráfico negreiro do continente. O primeiro volume lançado em 2019 nos mostrou o início e como esse sistema se instalou no Brasil colônia. Agora com o segundo volume em mãos, vamos nos aprofundar, dentre outras coisas, na febre do ouro, que mudou a história do nosso país para sempre.
O volume II começa com a descoberta de ouro no Brasil colônia e o nascimento de Minas Gerais, seguindo nos temos todos os costumes da vida cotidiana num sistema escravista, além é claro de exemplificar o que mudou no país que antes era agrícola para em seguida ser um dos maiores produtores de metais e pedras preciosas de todo o planeta. Dessa vez, o tráfico negreiro é abordado direto da África com o leitor entendendo bem como funcionava a compra e captura de pessoas para esse macabro comércio. A vida religiosa dos cativos também ganha espaço nos capítulos, além de um em especial que relata a vida de Chica da Silva, uma das mulheres mais famosas do período que foi de escrava para uma grande senhora rica que também tinha seus próprios escravos.
A divisão do livro permanece em capítulos, cada um com seu tema próprio e às vezes não seguindo uma cronologia correta de datas. Por ser um livro focado para estudo e reflexão, algo que se lê mais de uma vez, a divisão ajuda muito na organização de temas, tanto que é possível ler na ordem que o leitor quiser e até mesmo pular algum e voltar depois. Mas para quem lê na ordem proposta, o livro apresenta sensacionais duzentas páginas que em uma sequência angustiante, relata a descoberta de ouro no Brasil, o sonho realizado de alguns e o pesadelo na terra para milhares de outros. É extraordinário voltar e entender o que essa descoberta significou para o país naquela época, porém o mais importante a se falar primeiro é sobre quem fez essa descoberta. As hipóteses apresentadas na trama são explicadas com muito cuidado e calma, logo é impossível se perder. E o preço de toda essa riqueza foi muito alto, não é fácil passar pelos capítulos onde nos deparamos o custo em vidas negras que toda essa empreitada custou. Um débito que jamais será pago, uma dor que é até difícil sequer mensurar. Tanta dor, sofrimento, privação e sacrifício para enriquecer pequenos países do outro lado do oceano que só existiam graças a exploração de pessoas e de terras distantes.
Seguindo com a corrida pelo domínio das minas, o livro caminha por diversos temas interessantes e talvez um dos maiores é nas diferenças entre a escravidão brasileira e a dos Estados Unidos, conhecida por ter sido mais violenta do que a nossa. É surreal pensar que o Brasil foi um dos países que mais deu alforrias, liberdade documentada, para alguns escravos. É surreal pensar que existia muita miscigenação entre brancos e mulheres escravas e mais ainda que no Brasil teve poucas rebeliões de escravos fugitivos se formos comparar com as rebeliões que ocorreram no Caribe e nos Estados Unidos. Tudo isso num Brasil com uma das maiores populações de escravos de todo o mundo, porque isso aconteceu? Os Senhores eram bonzinhos aqui? A verdade chega a assustar quando entendemos a proporção que esse sistema teve aqui com várias ideias e costumes encravados na sociedade que pareciam naturais para todos.
Não existia distribuição de informações, os senhores estudavam seus escravos, procurando entender de qual região ou tribo da África eles se originam para nunca ter vários juntos em um mesmo lugar, para o grau de afinidade nunca ser firmado entre os indivíduos, afinal, divididos e sem informações, como reagir a alguma coisa? Fora isso ainda tinha as pequenas oportunidades que existiam que iam desde o escravo ter um pequeno espaço na terra para plantar para a sua existência, sendo possível vender o excedente, com a finalidade de comprar a sua própria liberdade com seu senhor. Claro que tudo isso acontecia em meio a jornadas de trabalho desumanas e vários castigos. Mas os poderosos sabiam que com pouca esperança, era possível domar esses indivíduos com mais força. Um sistema que entrava até mesmo no psicológico nas vítimas, macabro até a sua última fibra.
A leitura segue sendo o mais clara e acessível o possível, com parágrafos pequenos e muito bem organizados. O autor acaba divagando sobre alguns temas às vezes, principalmente quando começa a abordar as religiões na vida dos escravos e como ela acabou se fundindo com o cristianismo português. O tema é tão rico e extenso que acaba sendo pesada a abordagem do ator, pois a torrente de informações é muito grande e tal capítulo é inserido de forma brusca entre temas mais interessantes. A sensação que fica é que esse tema sozinho renderia um excelente outro livro, aqui fica um pouquinho pesado, destoa demais do resto da atmosfera presente na narrativa.
O ato final do livro é sensacional e começa com o nascimento do abolicionismo inglês e no resto da Europa. Afinal, porque a Inglaterra que enriqueceu com esse sistema, agora quer acabar com ele e não apenas isso, forçar outros países a acabar com ele também, inclusive Portugal e sua colônia mais rica, o Brasil. São várias as teorias que o livro apresenta sobre esse fato e mesmo que a trama traga várias possibilidades, o leitor nunca fica confuso pois o sentimento é claro e único.
Esse terceiro volume começa com a descoberta de ouro em Minas gerais e termina com a chegada da família real ao Brasil. A primeira vez na história em que um monarca europeu se mudou com sua corte para uma colônia e isso apresentou reflexos que mudaram o rumo do Brasil, definindo como o nosso país é nos dias de hoje. O livro não se aprofunda nesse tema, pois ele será o maior objeto de análise na terceira e última parte dessa trilogia a ser lançada futuramente. No final do segundo volume, a leitura se prova necessária, difícil e dolorosa, aquela leitura que pode ser diferente para muitos, mas quem enriquece o leitor de uma maneira surreal. Vale muito uma conferida.Ver também: Escravidão Vol.1 - Laurentino Gomes.
Fonte:gramaturaalta.