domingo, 20 de setembro de 2020

Comentando Sobre o filme "O Dilema das Redes"

Existem apenas duas indústrias que chamam seus clientes de usuários: a de drogas e a de software. Citada no filme "O Dilema das Redes", da Netflix, a sentença do professor da Universidade de Yale Edward Tufte leva o usuário a se reconhecer como personagem, e não mero espectador, do documentário sobre os impasses de uma era de vícios tecnológicos.

Quem acompanha notícias e pesquisas recentes sobre os impasses do mundo atual —polarização, ansiedade, depressão, desconexão com a realidade, fake news— pode imaginar que se trata do remake de algum filme de suspense. O problema é que o final desta história está em aberto. E o que se anuncia não é nada promissor.

Quem diz isso não são apenas os profetas do apocalipse avessos a mudanças, mas os próprios engenheiros deste novo mundo que nos reconfigurou. Fazem parte do elenco, entre outros, Tristan Harris, ex-designer ético do Google; Tim Kendal, ex-presidente do Pinterest; Justin Rosenstein, ex-engenheiro do Facebook; Roger McNamee, investidor em tecnologia, e Jaron Lanier, cientista da computação e autor de "Dez argumentos para você deletar agora suas redes sociais". Eles dividem suas análises sobre a tecnologia com nomes como Arthur C. Clarke e Sófocles, de quem é a frase de abertura do documentário: "Nada grandioso entra nas vidas dos mortais sem uma maldição".

A maldição do século 21 transformou nossa atenção no objeto mais cobiçado das grandes corporações.

Somos, em outras palavras, o que foi o petróleo para o século 20 e a extração de minérios, como ferro e ouro, nos séculos passados.

A ideia básica, como mostra Tristan Harris, hoje um militante contra o vício das redes, é que se você não está pagando pelo produto, você é o produto. Criadas para facilitar conexões e aprofundar laços entre pessoas que curtiam e compartilhavam coisas em comum, essas plataformas logo descobriram a fórmula de fazer dinheiro. Para isso era preciso transformar seres sociáveis em seres manipuláveis. Aqui mora o dilema.

O filme mostra como isso já está acontecendo, mesmo para quem garante só usar as redes para fins recreativos, todos os dias, todas as horas do dia e jura nunca ter se viciado.

Dopamina e algoritmos

A premissa básica é que temos uma necessidade biológica básica de nos conectar com outras pessoas. Desde sempre. Isso afeta diretamente a liberação de dopamina como recompensa. As redes otimizam essa conexão e criam um potencial viciante. Querem que passemos cada vez mais tempo conectados e expostos a mensagens e ofertas de todo tipo. Até aí, tudo pode ser assustador, mas não exatamente uma novidade desde que levamos os aparelhos ao banheiro pela primeira vez. O problema é que, ao longo dos anos, essas grandes empresas reuniram um arsenal de informações sobre nossos comportamentos e passaram a nos conhecer melhor do que qualquer outra pessoa, inclusive nós mesmos.Isso significa não só que eles sabem como está nossos humores e nossa saúde mental em determinada fase da vida, mas o que este estado alterado nos leva a fazer.

Os sistemas são capazes de antecipar tendências. Prever comportamentos por modelos de algoritmos. E vender esta tendência para quem quer saber como nos acessar quando estivermos propensos a compulsões. Podem, com isso, moldar e mudar nossos comportamentos conforme descobrem o que nos engaja e mobiliza.

As redes sociais, como mostra um dos entrevistados, é nossa chupeta quando nos sentimos desconfortáveis, solitários, com medo. Elas atrofiam nossa habilidade de lidar com problemas reais e diversos. A questão é que estaremos sempre desconfortáveis, solitários e com medo diante de padrões de beleza e comportamento que só quem seguimos parecem alcançar. E nos deprimimos e passamos mais tempo nas redes para compensar a frustração.

Tudo já seria preocupante o suficiente se esse ciclo vicioso fosse manipulado apenas para vender batata frita ou calça jeans.

Os manipuladores das redes sabem onde estão as maiores propensões às teorias da conspiração; pior, sabem que estes espaços se tornaram terreno propício para colher engajamento, o santo graal da vida em rede.

A sofisticação das redes, mostra o psicólogo social Jonathan Haidt em certo momento do filme, está relacionada ao aumento gigantesco da depressão, da ansiedade, do suicídio e da internação por autoflagelo entre adolescentes nos EUA. Essa geração, que começou a usar redes sociais durante a pré-adolescência, está mais frágil e se arrisca menos na vida. O índice dos que já saíram em um encontro ou tiveram qualquer interação romântica tem caído rapidamente conforme cresce o uso das plataformas digitais.

A explicação é que nosso cérebro não evoluiu conforme o poder de processamento dessas máquinas desde a sua invenção. Podemos administrar amigos e amores em comunidade. Mas numa comunidade de milhares de seguidores, o bug é iminente.


Como escapar?

Desde o começo de século, a polarização política e a intransigência dentro das bolhas não têm sido

só consequência da vida em rede, mas a sua condição de existência. Se não tivermos a quem odiar, não entregaremos aos donos do negócio o engajamento que eles mais desejam. Por isso clicamos e navegamos como coelhos em busca de cenoura estrategicamente penduradas em anzóis à frente do nosso nariz.

No filme, as referências a distopias recentes, como "Matrix" e "O Show de Truman" estão ali para mostrar que este processo já está em curso e desativá-lo não vai ser nada fácil. Antes é preciso nos reconhecer dentro da matrix.

Ao fim do documentário, os entrevistados dão breves e preciosas dicas de como conseguiram, eles mesmos, diminuir os danos do uso das plataformas que ajudaram a criar. E deixam dicas preciosas, a maior delas é “não deixem seus filhos conectados por muito tempo, pois o cérebro deles ainda está em formação”.

Fonte: Uol.

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