Existem apenas duas indústrias que
chamam seus clientes de usuários: a de drogas e a de software.
Citada no filme "O Dilema das Redes", da Netflix, a
sentença do professor da Universidade de Yale Edward Tufte leva o
usuário a se reconhecer como personagem, e não mero espectador, do
documentário sobre os impasses de uma era de vícios tecnológicos.
Quem
acompanha notícias e pesquisas recentes sobre os impasses do mundo
atual —polarização, ansiedade, depressão, desconexão com a
realidade, fake news— pode imaginar que se trata do remake de algum
filme de suspense. O problema é que o final desta história está em
aberto. E o que se anuncia não é nada promissor.
Quem diz isso não são apenas os
profetas do apocalipse avessos a mudanças, mas os próprios
engenheiros deste novo mundo que nos reconfigurou. Fazem parte do
elenco, entre outros, Tristan Harris, ex-designer ético do Google;
Tim Kendal, ex-presidente do Pinterest; Justin Rosenstein,
ex-engenheiro do Facebook; Roger McNamee, investidor em tecnologia, e
Jaron Lanier, cientista da computação e autor de "Dez
argumentos para você deletar agora suas redes sociais". Eles
dividem suas análises sobre a tecnologia com nomes como Arthur C.
Clarke e Sófocles, de quem é a frase de abertura do documentário:
"Nada grandioso entra nas vidas dos mortais sem uma maldição".
A
maldição do século 21 transformou nossa atenção no objeto mais
cobiçado das grandes corporações.
Somos,
em outras palavras, o que foi o petróleo para o século 20 e a
extração de minérios, como ferro e ouro, nos séculos passados.
A
ideia básica, como mostra Tristan Harris, hoje um militante contra o
vício das redes, é que se você não está pagando pelo produto,
você é o produto. Criadas para facilitar conexões e aprofundar
laços entre pessoas que curtiam e compartilhavam coisas em comum,
essas plataformas logo descobriram a fórmula de fazer dinheiro. Para
isso era preciso transformar seres sociáveis em seres manipuláveis.
Aqui mora o dilema.
O
filme mostra como isso já está acontecendo, mesmo para quem garante
só usar as redes para fins recreativos, todos os dias, todas as
horas do dia e jura nunca ter se viciado.
Dopamina
e algoritmos
A
premissa básica é que temos uma necessidade biológica básica de
nos conectar com outras pessoas. Desde sempre. Isso afeta diretamente
a liberação de dopamina como recompensa. As redes otimizam essa
conexão e criam um potencial viciante. Querem que passemos cada vez
mais tempo conectados e expostos a mensagens e ofertas de todo tipo.
Até aí, tudo pode ser assustador, mas não exatamente uma novidade
desde que levamos os aparelhos ao banheiro pela primeira vez. O
problema é que, ao longo dos anos, essas grandes empresas reuniram
um arsenal de informações sobre nossos comportamentos e passaram a
nos conhecer melhor do que qualquer outra pessoa, inclusive nós
mesmos.Isso significa não só que eles sabem como está nossos
humores e nossa saúde mental em determinada fase da vida, mas o que
este estado alterado nos leva a fazer.
Os
sistemas são capazes de antecipar tendências. Prever comportamentos
por modelos de algoritmos. E vender esta tendência para quem quer
saber como nos acessar quando estivermos propensos a compulsões.
Podem, com isso, moldar e mudar nossos comportamentos conforme
descobrem o que nos engaja e mobiliza.
As
redes sociais, como mostra um dos entrevistados, é nossa chupeta
quando nos sentimos desconfortáveis, solitários, com medo. Elas
atrofiam nossa habilidade de lidar com problemas reais e diversos. A
questão é que estaremos sempre desconfortáveis, solitários e com
medo diante de padrões de beleza e comportamento que só quem
seguimos parecem alcançar. E nos deprimimos e passamos mais tempo
nas redes para compensar a frustração.
Tudo
já seria preocupante o suficiente se esse ciclo vicioso fosse
manipulado apenas para vender batata frita ou calça jeans.
Os
manipuladores das redes sabem onde estão as maiores propensões às
teorias da conspiração; pior, sabem que estes espaços se tornaram
terreno propício para colher engajamento, o santo graal da vida em
rede.
A
sofisticação das redes, mostra o psicólogo social Jonathan Haidt
em certo momento do filme, está relacionada ao aumento gigantesco da
depressão, da ansiedade, do suicídio e da internação por
autoflagelo entre adolescentes nos EUA. Essa geração, que começou
a usar redes sociais durante a pré-adolescência, está mais frágil
e se arrisca menos na vida. O índice dos que já saíram em um
encontro ou tiveram qualquer interação romântica tem caído
rapidamente conforme cresce o uso das plataformas digitais.
A
explicação é que nosso cérebro não evoluiu conforme o poder de
processamento dessas máquinas desde a sua invenção. Podemos
administrar amigos e amores em comunidade. Mas numa comunidade de
milhares de seguidores, o bug é iminente.
Como escapar?
Desde
o começo de século, a polarização política e a intransigência
dentro das bolhas não têm sido
só
consequência da vida em rede, mas a sua condição de existência.
Se não tivermos a quem odiar, não entregaremos aos donos do negócio
o engajamento que eles mais desejam. Por isso clicamos e navegamos
como coelhos em busca de cenoura estrategicamente penduradas em
anzóis à frente do nosso nariz.
No
filme, as referências a distopias recentes, como "Matrix"
e "O Show de Truman" estão ali para mostrar que este
processo já está em curso e desativá-lo não vai ser nada fácil.
Antes é preciso nos reconhecer dentro da matrix.
Ao
fim do documentário, os entrevistados dão breves e preciosas dicas
de como conseguiram, eles mesmos, diminuir os danos do uso das
plataformas que ajudaram a criar. E deixam dicas preciosas, a maior
delas é “não deixem seus filhos conectados por muito tempo, pois
o cérebro deles ainda está em formação”.
Fonte: Uol.
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