Eu sempre me perguntei se existe um poder acima do poder. De modo que o poder maior que conhecemos não é mais do que uma marionete do grande e efetivo poder do qual jamais ouvimos falar. Como se tudo no mundo, até mesmo as guerras, fosse apenas um teatro decidido em um conluio promovido por esse poder acima do poder. Mas enveredar por aí, a partir de uma mera sensação de criança ou adolescente, não seria nada além de uma teoria da conspiração com tons de lenda urbana. No entanto, ao assistir a nova minissérie documentário original da Netflix, aquelas conjecturas de antes passam a tomar forma e ganhar um status de real.
The Family: Democracia Ameaçada começa com uma proposta narrativa à qual não tenho grande admiração, misturando filmagens de reconstituição entrecortadas com os depoimentos de pessoas da vida “real”. De início, tive dificuldade em definir se se tratava de um mockumentary (documentário ficcional) ou se, de fato, era um documentário tendo como objetivo algo próximo da realidade (lembrando aqui que documentários, apesar de supostamente terem um compromisso com a verdade, assim como todo e qualquer jornalista a priori, não passam de uma de várias possíveis representações de verdade). Após alguns episódios, dos 5 que constituem a série, ele abandona esse estilo narrativo e foca diretamente mais no padrão que conhecemos desse gênero. Inspirado em dois livros do principal locutor, Jeff Sharlet, a minissérie nos apresenta um grupo de características secretas com os grandes figurões do poder norte-americano (sejam eles republicanos ou democratas), mas que se unem em torno de um único mandamento: “Jesus plus nothing” (Jesus e mais nada, ou seja, nada além de Jesus). A ideia dessas reuniões “invisíveis” é colocar os ensinamentos de Jesus no meio político e expandi-los mundo afora.
A direção de Jesse Moss vai nos colocando dentro da existência desse grupo, que surge de uma verdadeira distorção da Palavra de Deus, ao extinguir da Bíblia todos os seus livros, deixando apenas os Evangelistas e Atos dos Apóstolos, o qual rebatizam como “Atos dos Embaixadores”. Liderados por aquele que chamam de “o homem mais poderoso de Washington do qual jamais ouviu falar”, Doug Coe, esse grupo existe há décadas e consegue unir em torno da política norte-americana o que eles consideram ser o padrão tradicional pregado pela família cristã. Não à toa, eles se autointitulam “The Family” (A Família). E, com este viés ideológico, supostamente acima do político, tentam fazer os EUA caminharem em uma jornada que enalteça os valores cristãos, bem como tantos países quanto puderem influenciar. Até aí, nenhum problema: você pode começar a gritar que o Estado é laico e eu te respondo que ser laico não é ser ateu. O Estado não pode impedir liberdade de culto e crença, nem promover leis cuja base seja justificada por um pretexto religioso. Mas nada o impede de ter um viés religioso, cujos ensinamentos possam dar um norte à sociedade. No entanto, acerca desse grupo resta saber: seria essa realmente a intenção deles ou apenas um uso para que consigam ainda mais poder? Nas palavras do próprio Jeff Sharlet: “ou este é o grupo mais ingênuo do qual já ouvi falar ou é o mais cínico de todos”.
O que se segue nos próximos episódios, para nossa surpresa (ou não), é uma onda de lideranças com pontos muito semelhantes em suas propostas sendo eleitas mundo afora. O ataque à comunidade lgbtqi+ com leis proibitivas de casamento ou pena de execução (como no caso da Nigéria), sendo, inclusive, condenado por vários outros ativistas evangélicos; uma direita tradicionalista em defesa da família e dos bons costumes; presidentes eleitos sendo abençoados por orações de seus aliados em cadeia nacional. Qualquer coisa que estou a falar não soa familiar? Pois é. Até mesmo o ex-inimigo, a Rússia de Putin, surge como um desses estadistas que flerta com essa orientação: a proximidade dele com a Igreja Ortodoxa Russa e a luta pelo tradicionalismo nas famílias. O fenômeno mundial contemplado diariamente nos noticiários são coincidências, um movimento natural ou a ação daquele poder acima do poder? A teoria da conspiração aqui passa a deixar seus tons de lenda urbana e começa a ganhar um status de factual em suas proposições.
Uma das teses principais do filme, mais do que qualquer tipo de denúncia ou constatação, é o que sugere seu título em português: estaria a democracia do mundo ameaçada pela ação de um grupo que se pretende secreto saído dos Estados Unidos da América? Mas, talvez o que mais importa mesmo em nossas perguntas é a reflexão supracitada de Sharlet: seria este o grupo mais ingênuo ou o mais cínico de todos? Jesus prega o Amor e alguém governar de acordo com a Palavra de Deus não poderia trazer prejuízo a ninguém. Seria impossível. No entanto, como diz a Bíblia em vários momentos, utilizar-se da sua Palavra de forma distorcida é garantir lugar nas trevas.