Os Estados Unidos, embora continuem sendo a única superpotência, estão perdendo toda a autoridade moral. A Europa, que ofereceu aos seus povos e ao resto da humanidade o projeto mais ambicioso e reconfortante do nosso tempo - a União Europeia -, está desmoronando. O mundo árabe-muçulmano mergulha numa crise profunda, agravada por um islamismo cada vez mais radical. As tensões socioculturais, em grande parte fomentadas pelas ondas nacionalistas, nunca foram tão exacerbadas. Grandes nações "emergentes" ou "renascidas", como a China, a Índia e a Rússia, irrompem no palco mundial numa atmosfera nociva, na qual reina a lei do mais forte e do cada um por si. Sem falar das graves ameaças, intensificadas pela aventura ultraliberalista, que pesam sobre o planeta (devastação do meio ambiente, abismo social, pandemias) e só podem ser enfrentadas por meio da cooperação global.
"Foi a partir da minha terra natal que as trevas começaram a tomar conta do mundo. Essa última frase... eu teria hesitado em escrevê-la há alguns anos, com impressão de ter extrapolado, de forma grosseira minha própria experiência e a de meus próximos. Hoje, contudo, não há mais dúvidas de que as convulsões que agitam o planeta estão diretamente ligadas ás que balançaram o mundo árabe nas últimas década." (trecho do livro)
A guerra árabe-israelense de junho de 1967
“Desse ponto de vista, seria mais adequado comparar a derrota árabe ao desastre da França em junho de 1940. Seu exército, apesar de ainda coroado com o prestígio de ter vencido a Primeira Guerra Mundial vinte e dois anos antes, desmoronou extremamente rápido ante a ofensiva alemã. As estradas encheram-se de refugiados, Paris foi ocupada, depois, o país inteiro. O sentimento da nação de ter sido nocauteada, humilhada, violada, só se dissiparia por ocasião da Libertação, quatro anos mais tarde. Aí está, justamente, a grande diferença entre 1967 e esses dois episódios da Segunda Guerra Mundial. Ao contrário dos americanos e dos franceses, os árabes ficaram atolados na derrota e jamais recuperaram a confiança em si mesmos. No momento em que escrevo estas linhas, quase meio século já se passou, e as coisas não melhoraram. Pode-se dizer, mesmo, que elas não param de se agravar. Em vez de se curar e cicatrizar, as feridas infeccionaram, e é o mundo inteiro que sofre as consequências.”
Século XX
“Quando tento fazer o balanço do século XX, tenho a impressão de que foi o palco de duas ‘famílias’ de calamidades: uma provocada pelo comunismo, outra pelo anticomunismo. À primeira pertencem todos os abusos cometidos em nome do proletariado, do socialismo, da revolução ou do progresso; os episódios foram muitos, dos processos de Moscou e períodos de fome na Ucrânia aos excessos norte-coreanos, passando pelo genocídio cambojano. À segunda ‘família’ pertencem os excessos cometidos em nome da luta contra o bolchevismo. Ali, também, os episódios foram incontáveis – o mais devastador, sem dúvida, tendo sido o cataclismo planetário causado pela ‘peste marrom’ do fascismo e do nazismo. A percepção dos diferentes crimes cometidos passou por várias oscilações. Só quando a Guerra Fria chegou ao fim, com a falência do modelo coletivista e a implosão da União Soviética, passou a ser aceitável zombar do ‘pequeno livro vermelho’, comparar Stálin a Hitler e questionar a imagem de Lenin.”
Desagregação do tecido social
“Quando vemos espalhar-se nas mídias, como ocorre sempre, uma lista das maiores fortunas comparadas ao que possui o resto da humanidade, a coisa não provoca nenhuma reação de ira. Ninguém mais espera um levante dos ‘condenados da terra’ – e seria, aliás, medonho se eles se rebelassem um dia e fizessem tábula rasa do passado, como nos versos da Internacional. Uma revolta assim só poderia terminar num gigantesco banho de sangue e numa orgia de destruição. Não é, com certeza, o que desejam aqueles que cultivam ainda um ideal de progresso, de liberdade, de decência, ou mesmo de igualdade. Se as disparidades de nossos dias são tão preocupantes, não é porque elas arriscam produzir rebeliões planetárias. É porque o desaparecimento da bússola moral que representa o princípio de igualdade contribui, em cada um de nossos países, e para a humanidade inteira, à desagregação do tecido social.”
Neste livro abrangente e poderoso, Maalouf atua como espectador e escritor comprometido, às vezes recontando eventos importantes dos quais foi uma das raras testemunhas oculares, destacando-se então como historiador acima da própria experiência. Por mais de meio século, o autor observou o mundo, viajando pelos seus quatro cantos. Estava em Saigon no final da Guerra do Vietnã, em Teerã durante o advento da República Islâmica do Irã, viajou com o entourage que repatriou o aiatolá Khomeini após seu exílio e estava em Nova York quando as Torres Gêmeas vieram abaixo – evento após o qual o mundo não seria o mesmo.